quinta-feira, 29 de julho de 2010

Um diálogo sobre o uso

Uma conversa com Jesus. Uma dessas rotineiras. Aí surgiu uma dúvida:

- Senhor, eu tava pensando... O Senhor quer que as pessoas vejam que eu te sigo, e eu tenho procurado muito isso. Acho que eu encontrei algumas coisas que eu posso fazer.

- Mesmo?

- É. Eu quero conversar contigo, pra ver se as minhas ideias são boas ou não.

- Geralmente as pessoas preferem adivinhar meus pensamentos.

Nessa hora o ego infla. Um sorriso contente (e um tanto soberbo, vale ressaltar) vai se delineando. Jesus parece interessado.

- Bom... Pra começar, acho que eu vou usar uma cruz. Um desses cordões que têm uma cruz, sabe? Claro que sabe, o Senhor sabe tudo... As pessoas vão olhar e perceber logo a cruz, e ver que eu sou cristão. Legal a ideia, né?

Jesus pensativo. (Por que será que ele tá pensando tanto? Ele nem precisa pensar, sabe tudo assim, até antes...)

- Não é suficiente. Muita gente tem usado cruzes por aí, mas a verdade é que isso não quer dizer muita coisa. A cruz virou o que vocês chamam de moda. Tem de tudo que é tipo: dourada, de madeira, de plástico, eu lá, eu não, cruz torta... A verdade é que a cruz vem perdendo o significado que devia ter.

- Ah, é verdade... Mas, sei lá, quer ver uma coisa que pouca gente quer? Ouvir músicas gospel. Eu acho que, a partir de agora, eu só vou escutar louvor. Meu ouvido vai ser santo, não quero mais saber de escutar coisas ruins.

- Bom, se você não quer escutar coisas ruins, existem duas maneiras: ou eu tiro a sua audição, ou eu tiro você do mundo. A grande questão não é o que você escuta, e sim o que você retém. Além disso, não é sempre que você vai poder escutar músicas ou cantar perto dos outros. O silêncio também é agradável, e muitas vezes preferível. Quer dizer, música não é o bastante.

- Poxa... Ah, acho que a Bíblia é o que eu poderia usar quase sempre então... Não faço barulho, ninguém pode me impedir de ler... Posso ler onde for, e todo mundo vai saber que eu sou seu.

- Será? Não que seja ruim você querer aprender mais de mim; mas o que eu quero dizer é que os homens acham que é simplesmente ler e todo o conhecimento vem. Minha Palavra excede o entendimento humano, e só pode ser explicada por mim mesmo. Aliás, você, lendo uma Bíblia sempre no meio de todos, acaba se isolando das outras pessoas, por muitos motivos... Já cheguei a criticar muitos que me honram com os lábios, mas têm o coração longe de mim; e existem pessoas que são assim quando leem a Bíblia, ou cantam, ou falam de mim. Não corra o risco de ser um desses.

- Nossa, bem lembrado... Ainda bem que eu parei pra conversar contigo.

Jesus sorri (pelo menos é o que se imagina). Ainda bem, realmente.

- Ah, sim. Eu poderia começar a usar blusas "Jesus te ama", "Exército de Cristo", "Sorria, Jesus está te filmando" ou coisas do tipo. Ia ser bom, e eu não ia me isolar das pessoas. Posso chegar com um sorrisão, abraçando, me aproximando e crescendo e...

- E aí, no abraço, eu fico ali, no meio, meio esquecido. Como sempre. Aliás, quem tem que crescer sou eu, e não você. Uma camisa é o tipo de coisa que você usa e suja e lava e usa até "ficar feia". Do jeito que você é (e eu sei como você é, porque eu te conheço), você não vai querer ficar o tempo todo usando as mesmas roupas. Sinto muito, mas as blusas não são uma ideia tão boa assim.

Parece que Jesus está ficando um pouco aborrecido. O clima começa a pesar.

- Bom... Desculpa, Senhor. Vou pensar em algo melhor. Ah, é verdade: a minha pele não desbota, não estraga, eu não troco...

Dessa vez Jesus se recusa a dizer qualquer coisa. Se ele soubesse o peso que o silêncio dele tem, quantas coisas esse não falar acaba dizendo... (Ele sabe, e talvez por isso ele escolha se calar.)

Tensão. O que dizer? Parece que nada agrada.

- Ai, Jesus...

- Que bom que do meu nome você se lembra.

Dói. A mente já não produz, parece que os esforços são nulos. E a dor de não agradar.

- Mas eu não sei... Me diz então, Jesus: o que fazer? O que eu ponho, o que eu visto, o que eu uso no meu corpo? Não dá pra adivinhar.

- Demorou a perceber isso...

Espera. As palavras do começo... Não eram pros outros? Crise. Quando foi que as coisas mudaram? Jesus espera pacientemente. O ego murcha. Parece que a tendência humana é única; o eu é o mesmo, sempre parecendo menor do que realmente é. Jesus quer falar; depois do silêncio perturbador, qualquer sinal desses é muito mais sensivelmente percebido.

- O tempo todo você tentou dar a resposta certa a uma pergunta errada. A questão não é você usar algo no seu corpo. Use o seu corpo. Use a sua vida. Em vez de uma cruz leve e fácil no pescoço, tome a sua cruz todo dia, depois de ter negado a sua própria carne, a si mesmo. Crucifixo não: crucifique-se. Seu eu nunca vai deixar você fazer a minha vontade.

Faz sentido.

- Em vez de querer encher o ambiente com notas musicais a meu respeito, encha o seu coração com o meu louvor, com a minha glória. Deixe tudo o que eu sou começar a se manifestar de dentro para fora. Acredite, eu não caibo em você. Eu vou transbordar, e todos ao redor vão perceber que eu sou através de você. Da mesma forma com a minha Palavra: deixe que eu te mostre a beleza inefável de tudo o que eu digo, deixe que eu mesmo te diga o que significam as minhas palavras... É esse o jeito: o ser humano nunca vai me entender pensando por si mesmo. E não se esqueça de que você é um ser humano.

É, pois é.

- Quando você fizer isso, vai aprender a dar o devido valor às coisas. Vai ver que mais importante do que as blusas que você queria usar é o sorrisão cheio do amor que eu te dei para que você possa amar; sorrisão acompanhado de um abraço providencial a alguém que precisa de amor (porque todos precisam do meu amor, quer reconheçam isso, quer não). Vai fazer do seu corpo meu templo, e vai aprender a respeitá-lo em amor a mim e aos outros (porque quem me ama ama ao outro, porque faz a minha vontade), e vai começar a pesar com visão os prós e contras de muitas atitudes à primeira vista bem intencionadas.

Ai, ai... Pausa para reflexão.

Pausa breve, é claro, porque a próxima coisa a se dizer é meio óbvia.

- Difícil... Acho que eu não consigo.

(Nem comentar quanto foi difícil admitir isso também.)

- Nunca foi fácil. Eu que o diga. Mas você não está sozinho.

A vida dói. A verdade dói. E o caminho... Também tem que doer.

- Uma última coisa.

Parece que Jesus quer fechar bem a conversa.

- A grande questão não é você usar: é você ser usado. Antes de eu deixar que você use, você deve deixar que eu te use.

Ele é bom nisso. Timidamente passa pela cabeça a coisa certa a se dizer, afinal.

- Amém.

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